Por Alex Martins Moraes e Juliana Mesomo
Eduardo Viveiros de Castro promete a descolonização do pensamento, mas nos entrega, paradoxalmente, o reforço das genealogias e práticas institucionais estabelecidas; ele restaura o lugar de enunciação – reproduzido desde o século XIX – do antropólogo “brilhante” e erudito, comprometido, antes de qualquer coisa, com a sua própria disciplina. É um Emiliano Zapata montado no cavalo de Napoleão.
O debate iniciado neste texto recebeu novos desdobramentos numa intervenção mais recente intitulada Viveiros, indisciplina-te!. Em 2017, ambos os textos foram publicados em castelhano pela Revista Tábula Rasa precedidos por uma breve apresentação na qual os autores contextualizam sua crítica ao que denominam “condições de possibilidade” da antropologia viveiriana.
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Afinal, como Viveiros vive a política? Interpelações e “perguntações” em torno da entrevista de Eduardo Viveiros de Castro na Revista Piauí.
Além de desdobrar as “lucubrações periféricas” que Viveiros de Castro soube refratar com êxito na academia metropolitana, a reportagem da revista Piauí (acessar texto completo aqui) deixa antever alguns traços incômodos, às vezes preocupantes, de uma trajetória intelectual demasiado afeita ao establishment conservador e anti-político da antropologia. Estas impressões nos convidam a desenvolver, nas linhas que seguem, um breve exercício de interpelação.
Bruno Latour, amigo de Viveiros, sugere que é a manutenção de certas cadeias de transmissão que garante a estabilidade dos quase-objetos criados pela ciência. Portanto, a única forma de preservar a força dos enunciados científicos é circunscrevê-los, sempre, a condições laboratoriais. Segundo Latour, “como os fatos científicos se fazem dentro dos laboratórios, para fazer que eles circulem é necessário construir redes custosas dentro das quais possam manter sua frágil eficácia. Se isto significa transformar a sociedade num imenso laboratório, pois então há que fazê-lo” (Latour, 1983, p. 166).
A imagem da rede é uma boa metáfora sobre como certas experiências de classe, quase laboratorialmente controladas, podem culminar, sem grandes imprevistos, nos bulevares de Paris. Para tanto, é imperioso que não cesse jamais aquele “ruído de fundo em francês” ao qual se refere Viveiros de Castro durante a entrevista: deve-se instalar a vida num ponto arquimediano entre a “Vila Proletária” e a aldeia indígena, de modo que seja possível “evitar aglomerações” e, ao mesmo tempo, desenvolver a atividade contemplativa, baseada no livre experimento com as formas. Graças a esses procedimentos criteriosos, Viveiros parece nunca ter saído de Paris, mesmo vivendo no Rio de Janeiro.
Imerso num caldo de cultura controlado, onde habitavam “malandros”, “melanésios” e índios hiper-reais – todos provedores dos melhores “baratos” ao intelecto –, Viveiros não quis experimentar mutações subjetivas realmente perigosas. Era direito seu. Conheceu a obra de Claude Lévi-Strauss quando ainda estudava Ciências Sociais na universidade católica e isto influenciou, como uma espécie de ascese, seus posteriores itinerários acadêmicos. Depois se matriculou no Programa de Pós-graduação em Antropologia do Museu Nacional, onde Roberto DaMatta o acolheu de braços abertos. Mais tarde veio a experiência na Inglaterra e a coroação definitiva, pelas mãos de Marilyn Strathern, de sua criativa apropriação pós-estruturalista do cânone estruturalista francês (ou seria ao contrário?). A longo deste trajeto, o autor de Metafísicas Canibais estabeleceu uma formidável simbiose com a antropologia e seu grande destino enquanto ciência: recrutar o “outro” para servir à disciplina; representar o outro em sua ausência, ou melhor, preencher a ausência necessária do outro com algo mais útil para a humanidade, como, por exemplo, implodir o kantismo nas bases da filosofia ocidental. O problema é que a antropologia, como qualquer disciplina, é nada à vida. Ou melhor, disciplina a vida.
Questionar as disciplinas e seu modus operandi é um passo fundamental para construir espaços outros de emergência epistêmica, horizontais e pluriversais. Para tanto, a crítica às instituições acadêmicas se torna imprescindível. A descolonização do saber vai sempre de mãos dadas com a descolonização do poder. Não basta, por conseguinte, radicalizar conceitos se continuarmos reivindicando todas as solenidades disciplinares, com seus respectivos cânones e santas trindades (Lévi-Strauss-Pierre Clastres-Marshall Sahlins, para citar um exemplo presente na reportagem que por ora nos ocupa). Eduardo Viveiros de Castro promete a descolonização do pensamento, mas nos entrega, paradoxalmente, o reforço das genealogias e práticas institucionais estabelecidas; ele restaura o lugar de enunciação – reproduzido desde o século XIX – do antropólogo “brilhante” e erudito, comprometido, antes de qualquer coisa, com a sua própria disciplina. É um Emiliano Zapata montado no cavalo de Napoleão.
A antropologia praticada por Viveiros de Castro é não-política porque, movida pelo desejo de “descolonizar a teoria” – e nada mais –, termina ofuscando o potencial disruptivo e criador da prática social concreta de seus eventuais interlocutores. Destes parece haver restado apenas o pensamento, coletado aqui e ali por pesquisadores atentos e em seguida processado sagazmente como ontologia alternativa, como evidência de que existem formas radicalmente diferentes de pensar natureza, cultura, subjetividade e corporalidade. Estas ontologias encantadoras são atualizadas em laboratório, bem longe da política encarnada dos grupos subordinados, na qual as práticas e os enunciados coletivos são sempre conjunturais e não necessariamente sistemáticos. O perspectivismo, tal como apresentado por Viveiros de Castro em sua entrevista à Piauí, é pensamento indígena purificado que certos neoxamãs mais ou menos niilistas — na verdade, os catedráticos de sempre — costumam expor, sem ruídos nem riscos, às suas audiências acadêmicas. Trata-se de um projeto que só reitera a legitimidade dos espaços e das formas de produção de conhecimento instaurados pela modernidade. Embora tenha o aspecto de um programa intelectual que se nutre das inquietações filosóficas indígenas, seu efeito mais notório é o de catalisar carreiras acadêmicas no norte global (ou no norte incrustado no sul global). Crítico mordaz do neodesenvolvimentismo ecocida, Viveiros exerce, inesperadamente, o que poderíamos chamar de extrativismo cognitivo.
Apesar da suposta radicalidade e do tom crítico que professa nas páginas da revista Piauí, Viveiros de Castro não está interessado em desenvolver critérios que proporcionem um engajamento político com as dinâmicas transformadoras de seu próprio tempo. Ele se aloja num lugar de exceção, onde os enunciados alheios — que têm vida autônoma e dinamizam processos históricos concretos — tornam-se meras fabulações que nos desorientam à hora de pensar seriamente as conjunturas e suas possibilidades imanentes. As asserções de Viveiros estão ancoradas no terreno das formalizações: ali podemos brincar tranquilamente com dualidades e oposições absolutas, à custa de ignorar as diferenciações reais que convertem as pessoas em sujeitos da transformação política de seu próprio mundo.
Este tipo de “operações do espírito” ao qual acabamos de nos referir se manifesta com clareza quando Viveiros decide traçar um panorama da política institucional brasileira. Num único gesto retórico ele faz desabar toda a esquerda – rotulada de “Partido dos Trabalhadores” – na velha utopia desenvolvimentista, alentada por diversas forças autoritárias que se revezaram no poder ao longo da história nacional. O problema de condenar o PT de forma absoluta e anacrônica – alegando um suposto “pecado original” proletarista enraizado no sudeste do país – é que podemos terminar ignorando os diferentes espaços e temporalidades que confluíram no projeto petista ao longo das suas metamorfoses. Onde ficaram Chico Mendes, as diversas vertentes do movimento negro e o próprio MST nesta impugnação descuidada da esquerda tradicional? A imagem chocante e hermética do PT e de sua trajetória desconsidera tanto a potência desses sujeitos políticos quanto sua influência histórica no Brasil de hoje.
Afirmar que a “esquerda” está realizando dialeticamente o sonho da direita não passa de outro jogo retórico em que se confrontam imagens absolutamente opostas na desesperada tentativa de manter o pensamento em condições laboratoriais adequadas. Não se trata, aqui, é claro, de salvar ou perdoar determinado partido, mas sim de reconhecer as forças e epistemes que compuseram um processo histórico. Tratar a trajetória da “esquerda realmente existente” como um percurso definitivamente maculado pelo discurso proletarista do sindicalismo do ABC paulista só resolve os dilemas e desconfortos de quem deseja viver uma política purificada. Ainda que o movimento sindical informe as bases do projeto petista, não podemos ignorar que também existiram outros desejos e programas, outras expectativas e prefigurações – talvez “laterais” ao partido – irredutíveis a qualquer pretensão de síntese. Quem se atreveria a afirmar que tais vetores levariam, fatidicamente, ao neodesenvolvimentismo? E se conduzíssemos de outro modo nossa crítica ao atual estado de coisas? E se recolhêssemos, por exemplo, as sugestões de Deleuze – cuja matriz reflexiva é tão cara a Viveiros de Castro –, para quem “existem duas maneiras de considerar o acontecimento: uma que consiste em transcorrer o acontecimento retendo [sua] efetuação na história, [seu] condicionamento e apodrecimento na história; outra – que nos parece mais atraente – consiste em elevar o acontecimento, instalando-se nele como num devir, rejuvenescendo e ao mesmo tempo rejuvenescendo nele, passando por todos os seus componentes ou singularidades” (Deleuze, 1990 s.p.).
Para entender a realidade em que vivemos hoje e para conseguirmos enunciá-la politicamente, talvez precisemos prescindir, por um momento, das imagens purificadas que Viveiros nos oferta. O PT deve deixar de ser apresentado anacronicamente como uma totalidade malfadada, que condena todas as experiências que historicamente a compuseram. Muitas parcelas do PT e dos movimentos sociais que a ele se associaram em ocasiões específicas foram sendo marginalizadas no contexto do atual projeto de poder. Em suma, não se realizaram nos governos de Lula e Dilma. Estes segmentos compõem a heterogênea constelação de grupos que hoje estão nas ruas [1]. Figuras como Chico Mendes e os sem-terra, assim como as experiências de associativismo comunitário nas cidades e os movimentos negros, que em seu momento inspiraram e dinamizaram o projeto político do Partido dos Trabalhadores, devêm, hoje, inspiradoras de uma nova radicalidade. As forças sociais que decidiram explorar as consequências mais radicais abertas pela conjuntura de junho/julho são justamente aquelas cujo projeto de emancipação, as demandas por reconhecimento e a própria experiência de sociedade cabiam cada vez menos no horizonte pragmático da esquerda governista. Esta miríade de movimentos – que inclui agrupações de juventude, tendências socialistas dos partidos no governo, agremiações anarquistas, comitês populares da Copa do Mundo, organizações de comunidades tradicionais, movimentos pela igualdade de gênero, centrais sindicais classistas, etc. – negou o discurso tutelar da política oficial para exercer uma resoluta disposição de cuidar dos próprios assuntos, utilizando um novo repertório tático que a frustração com a institucionalidade colocou ao seu alcance.
O atual momento é de superar o medo das aglomerações e de se deixar afetar pelas novas máquinas de guerra em curso, declinando, pelo menos por um lapso, dos seguros lugares de enunciação avalizados pelos ambientes disciplinares e laboratoriais.
Textos mencionados:
Latour, B. (1983). Give Me a Laboratory and I will Raise the World. En K. Knorr-Cetina & M. Mulkay (Eds.), Science observed: perspectives on the social study of science (pp. 141-170). Londres: Sage.
Deleuze, G. (1990). Le devenir révolutionnaire et les créations politiques. Recuperado de: http://www.multitudes.net/Le-devenir-revolutionnaire-et-les/.
[1] Esta intervenção foi redigida no início de 2014, alguns meses depois de uma onda massiva de protestos populares decretar o fim do consenso social organizado em torno do projeto político do Partido dos Trabalhadores.
Texto muito bom. Venho tentando elaborar um crítica à “economia simbólica da alteridade” de Viveiros e seus discípulos com base na ideia de que a etnologia produzida nesse contexto Cultural do Museu Nacional (instituição fundada por D. João VI, diga-se de passagem) é um artefato ancorado em convenções racionalistas e academicistas que se utilizam da gramática intelectualista do estruturalismo, abusando de conceitos como “sistema”, “estrutura”, “categorias”, “lógica do sensível” etc. e cria efeitos surrealistas, inventando “realidades” indígenas explicadas através de “estruturas sóciocosmológicas”.Enfim, gostei muito do texto de vocês, bom saber que outras pessoas enxergam a falácia da “descolonização do pensamento”, da “virada ontológicas” e outras ideias mirabolantes repetidas por esses eruditos da antropologia euro-americana que curtem um “barato intelectual”.
Olá Francisco, gostaria que você explicitasse a relação entre o Museu Nacional ter sido fundado por D. João VI e o fato dele produzir uma antropologia que você considera “colonialista”. Pois, a crítica à tal “Economia Simbólica da Alteridade” é pelo fato dela se utilizar da “gramática intelectualista do estruturalismo”? Qual a antropologia feita no Brasil que não devem à meia dúzia de “gringos” o seu arcabouço conceitual? (Etnicidade, Território, Identidade, é tudo ok? Não rolou uma reapropriação política deles, na busca por uma descolonização, depois de terem sido implementados na Ciências Sociais clássicas? Em caso afirmativo, porque não podemos fazer isso com “sistema”, “estrutura”, ou a “lógica do sensível”? Aliás, isso já não está em andamento?) Eu vejo alguns intelectuais buscando conexões sul-sul como forma de mudar esse quadro, mas muita gente vive de paradigmas “primeiro mundistas”, ainda que “descolonialistas”. Já os efeitos “surrealistas” que criam “realidades indígenas explicadas através de estruturas sociocosmológicas” acho mais interessantes de abordar criticamente. Da minha parte, acredito que “estruturas sociocosmológicas” existam e que elas não restringem aos indígenas – vide “Tristeza da Doçura” e “Western Illusion of Human Nature” do Marshall Sahlins. Nesses textos, eu entendo, a questão é justamente desconstruir o “dado” da fundamentação epistemológica da hegemonia euro-americana. Se você aceita esse princípio, pelo menos em parte, nossa conversa pode ser produtiva. Caso contrário, eu gostaria de entender por que não. Meu incômodo com o EVC, eu resumiria, é que eu acho que ele, como outros autores produtivos, tem escritos com tons diferentes e propósitos diferentes – algo como “fases diferentes”. O cara foi um etnógrafo competente, fez contribuições interessantes para pensar parentesco e corporalidade entre povos indígenas e esse negócio de “perspectivismo ameríndio”, se não pode ser generalizado, ajuda entender algo sobre como as populações amazônicas (e não só) se relacionam com seus Outros – só para lembrar que o artigo é uma revisão e uma proposta, baseada num número extenso de etnografias escritas durante décadas. E tem índio que concorda, e tem índio que não concorda, e tem índio que já escreveu artigo e tese comentando. Já sou mais reservado quanto a essa tentativa de fundamentar uma “antropologia perspectivista” ou dialogar com essa coisa de “virada ontológica”. Agora, ainda preciso da lista de quem escaparia da crítica à “falácia da descolonização do pensamento” ou “extrativismo intelectual”, por que até onde eu vejo a saída tem sido cômoda: basta falar de descolonização, citar alguns autores que tratem disso para se safar… ou basta escrever sobre “política” ou “ativismo” para se livrar da pecha do “extrativismo intelectual”. Ou seja, muita gente completamente ancorada numa pensamento estadista, tributário de modelos euro-cêntricos, (e às vezes reacionário!) discutindo com base em categorias que emergiram em paralelo com a modernidade hegemônica euro-americana se livra dessas questões por se alinhar com o discurso da descolonialidade. Enfim, a antropologia que eu gosto é justamente aquela que me permite um “barato intelectual” – por que para construir soluções não hegemônicas é preciso deslocar o pensamento, hackear o estabilishment. Focault já dizia que é a crítica tende a ser um formato tautológico por que acaba por referendar o que critica – é preciso escrever e pensar de forma diferente para escapar ao que é hegemônico. Viveiros de Castro, imagino, por algumas vezes consegue fazê-lo. Gosto de ver críticas à tal “economia simbólica da alteridade”, é bom que a coisa ande, mas tenho achado improdutiva essa pegada “ad hominem” e unilateral. Do meu ponto de vista se voltarmos a mesma crítica às outras “escolas” elas também tendem a ruir. O que isso indica aliás, é que mais do que escolher paradigmas teóricos mais “morais” ou “revolucionários”, o que precisamos talvez é buscar é uma transformação dos modelos acadêmicos como um todo – especialmente nas Ciências Sociais.
Olá João Congo, tudo jóia?
Bem, eu estudei antropologia na UFMG mas acho hoje que poderia ter empregado meu tempo de maneira mais construtiva, bela, lúdica, artística e terapêutica. Não levo mais a sério nenhuma das convenções da antropologia, nenhum de seus jargões gritados aos quatro ventos como esclarecimento sobre os povos não-ocidentais e não levo a sério nenhum autor intelectual da disciplina. NENHUM. Dedicar tempo e energia a algebrificar sociocosmologias e enquadrar a vida indígena em estruturas e sistemas, pra mim, não faz nenhum sentido. É pegar nossa camisa de força e transplantá-la a gente que não tem nada a ver com isso. É um estranho fetiche ocidental. Portanto, acho que se você quiser alimentar seu interesse e construir ou reforçar ideias que levem a antropologia a sério, conversar comigo será perda de tempo, e você poderá se irritar. A antropologia a meu ver é uma atividade inerte, que só estimula um intelecto ansioso e ávido por se impor sobre todos os outros domínios do ser, sobretudo essa antropologia representada por essa triste figura racionalista mascarada de gênio-santo-louco-radical que é o Viveiros de Castro: apenas um tipo ideal desse pathos antropológico decadente, apenas o mais ilustre e admirado no Brasil. E quanto à sua relação com os povos indígenas, ela não passa de um meio de inventá-los como intelectuais e filósofos pós-estruturalistas. Eu não tenho apreço pela “disciplina” da disciplina, pelo ethos intelectualista exigido nas entre-linhas e nem pelo academicismo, elementos subjetivos que a meu ver são inseparáveis do tipo de pensamento produzido de dentro da atividade acadêmica e da burocracia do saber que sustentam plenamente a antropologia. Ela deve ser demolida, deve ligar-se aos povos indígenas de uma maneira totalmente diferente da feita até agora, assim como o intelecto inteiramente ligado ao ego dos antropólogos deve ligar-se ao coração e à libido de uma maneira plena. É isso que busco, e por isso abandonei a antropologia. Já tive muita fé nela, levei-a muito a sério, mas hoje, tenho uma visão iconoclasta sobre ela e me afasto gradativamente desse assunto, que só me interessa na verdade quando posso desconstruir e criticar com toda força.
Abraço,
Francisco.
O texto contém provocações interessantes, dignas de reflexão. Eduardo Viveiros de Castro, obviamente, não está acima da crítica, e também não precisa que ninguém venha ao seu socorro. E, no entanto, tenho a impressão de que o espaço que ele ganhou no debate público tem menos relação com um “hype” de seguidores do que com o fato de que NENHUM outro antropólogo se digna a tentar ocupar esse espaço – e quando o faz é para vomitar retórica conservadora, vide Yvonne Maggie e Roberto da Matta. Nenhum dos “velhos de guerra” quer fazê-lo. Poucos antropólogos “consagrados” estão se pronunciando publicamente sobre o desastre do indigenismo e da política ambiental de um governo que age sob a orientação de gente como Mangabeira Unger, Gleisi Hoffman, Isabella Teixeira, Kátia Abreu, Aldo Rebelo e Eduardo Cardozo. A análise do vazio da “crítica ao PT” por EVC, que ocupa a maior parte desse ensaio, acerta em apontar outras possibilidades, em escapar do comodismo da política “purificada”; mas parece se esquecer que são as decisões e a omissão do governo que potencializaram uma explosão de violência no campo, o aumento dos assassinatos de lideranças indígenas, extrativistas e camponesas. São essas mesmas decisões que colocam como pauta primeira projetos megalomaníacos, tecnicamente inviáveis e de alto impacto social e ambiental. Qual o tom da crítica que deveríamos reservar ao PT? Pessoalmente, prefiro a abordagem de Viveiros de Castro ao quase silêncio camarada dos outros…
Sem dúvida a verve política do Viveiros (seu sócio-ambientalismo, por exemplo) é importante, e haver no Brasil um acadêmico como ele, esclarecido, bem informado e defensor de uma mudança radical nas práticas humanas (como o fim do capitalismo) em prol da preservação do planeta é algo muito positivo. Meu problema em relação a ele e à antropologia não está numa crítica em relação às suas teorias políticas e aos belos e impactantes discursos emitidos em seus livros e entrevistas. Aliás, depois de maio de 68, o que não faltam são professores universitários que incorporaram em seus discursos uma verve anarquista e um interesse profundo por relações de poder. Minha crítica se dá em relação às práticas, que continuam as mesmas, e as instituições também, continuam as mesmas, repetindo as mesmas práticas de poder, um mesmo ethos elitista (agora mascarado por um posicionamento teórico à esquerda) e uma mesma subjetividade que preza por uma vaidade intelectual arraigada. Nietzsche, um ex-acadêmico por escolha e por desprezo a esse pathos racionalista, já dizia no Zaratustra: experimente andar sobre a cabeça de um erudito… Eu, pessoalmente, acho que se alguém assim o fizer, verá o ego deles se manifestando ferozmente em prol da defesa do status quo. Peguemos o caso de Viveiros: um ferrenho crítico do estado à la Clastres e à la Deleuze e um ferrenho defensor (teórico) de práticas outras de conhecimento. Apesar de todo esse discurso libertário, Viveiros e vários outros acadêmicos com retóricas similares se alimentam do estado até o osso, perpetrando a mesma estrutura de financiamento de pesquisas (via Capes, via MEC, em suma, via dinheiro público e via instituições oficiais de fomento) que não se alimenta de vias outras de impulso da atividade de pesquisa. São homens téoricos, acomodados numa estrutura academicista conservadora e perniciosa que ceifa a economia popular de um país pobre como o nosso, utilizado para manter departamentos de antropologia que produzem pesquisas abstratas e barrocas de pouquíssima relevância coletiva, (e quando digo isso é para frisar que a etnologia não inclui povos indígenas fora das teses, livros e conferências), devoradas apenas por pequenos grupos de interesse que pragmaticamente contribuem muito pouco ou nada com a sociedade brasileira e com as sociedades indígenas. E isso talvez seja até motivo de orgulho, algo que eles defendem com respostas arrogantes, como se pensar pragmaticamente fosse algo menos “complexo”, menos “inteligente”, ou menos “estimulante” para o “barato intelectual” e a experimentação livre com as formas (em arte, é outra coisa né? na academia isso soa ridículo). Em suma, caro amigo, a antropologia no Brasil, como prática e como modo de conhecimento colonizado que é reproduz um padrão parasitário de relação com os índios e com os cidadãos brasileiros que nunca saberão o que a antropologia é e efetua.
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Viveiros de Castro: um narcisista que carrega a roupagem do “anti-narciso”, da “descolonização do pensamento” e da “virada ontológica”. No “perspectivismo ameríndio” temos uma cultura (a humanidade) e muitas naturezas (a diversidade de corpos). No perspectivismo acadêmico-antropológico presente no “sistema sociocosmológico” em que Viveiros se insere, temos uma Cultura (A alta cultura e o intelecto) e muitas naturezas (índios, brancos, ocidentais, orientais, etc.) Para Viveiros, por baixo de cada ser humano em sua roupagem há o intelecto e a Cultura, feitos à imagem e semelhança de um filósofo francês. Viveiros vai aos Yawalapíti e deduz teses de seus discursos, deduz teorias linguistico-cognitivas, deduz filosofias pós-estruturalistas e estruturas sóciocosmológicas triádicas. Só que se entre os índios, mesmo com uma alma humana universal que está no fundo dos animais e de outros seres, é o homem quem de fato come o pecari, entre os antropólogos, mesmo com um mesmo intelecto Cultural democraticamente dividido na humanidade, são eles quem têm prestígio internacional, louros econômicos e uma série de privilégios de classe na sociedade da qual fazem parte. O perspectivismo Viveiriano: uma alma como pano de fundo (um ego poderoso – um narcisismo arraigado – uma vaidade inabalável) e muitas naturezas e roupagens (um “anti-narciso”, uma “descolonização do pensamento”, uma “virada ontológica”, um ativismo verde, um anarquismo “contra o estado”, uma antropofagia radical). Viveiros não responderá a críticas, pois sua perspectiva não abarca aqueles que problematizam suas teorias barrocas fora das meras convenções de sua Alta Cultura Acadêmica. Suas teorias são dirigidas aos antropólogos que têm suficiente bagagem intelectual para entendê-lo, mas acima de tudo admirá-lo. Ele quer elogios, ele é um gênio. O perspectivismo veio para salvar a antropologia e colocar o Brasil no mapa (no mapa da disciplina e nos debates de Cambridge). Com algum talento para percepções de cunho psicológico podemos perceber seu narcisismo. Ele parece querer ser um Lévi-Strauss tropical, antropofágico, mas infelizmente não passará de um erudito, intelectual, acadêmico, como seu mestre, ainda que a “contracultura” seja tão presente em suas ideias… É tudo uma questão tribal. A antropologia é um grupo de interesse que não percebe e não está interessada em perceber seu privilégio de casta. São “brâmanes” interessadíssimos nas culturas, ou melhor, “multinaturezas” do Outro. Seus conceitos não ultrapassam e não pensam sua realidade privilegiada, só o privilégio dos outros. Viajam, aprendem, leem, escrevem, pensam, ensinam em instituições sagradas. São os prestigiados letrados da Sociedade Ocidental, num Brasil hipócrita, excludente, antidemocrático e com castas inconscientes. Os “nobres” da antropologia não contribuem para sanar o lapso educacional e cultural de 500 anos. Ensinam a si mesmos, pensam para si mesmos e seus discípulos e vão dando continuidade à sua medíocre casta, que tive a felicidade de abandonar, me sentindo sempre um estranho no ninho. Por favor, não comparemos Viveiros a pessoas ligadas à arte e à antropofagia. Falo de Zé Celso, Caetano, Glauber, Helena Ignez e outras fodas por aí… esses são antropofágicos, porque devoram pelo inconsciente, pelo corpo e pela libido toda a loucura dos brasis e vomitam loucuras de volta para qualquer um que possuir olhos, pele, narizes, ouvidos, pêlos, chinelos ou sapatos, bermudas ou smokings, tangas ou vestidos, paus e bucetas. Viveiros come um menu insípido vindo da sua etnologia escolar, e vomita uma sopa de letrinhas para quem tem cérebro, cu de ferro sem veias, óculos de aro grosso, muito pedantismo e falta de senso de humor genuíno (Não falo de piadinhas acadêmicas sem graça e sem vida). Vomita para quem prefere a pedra à carne. Agora, de fora, gosto mesmo é de criticar a antropologia, perceber seus sintomas, suas características psicológicas compartilhadas, seu estilo de vida… Lute Viveiros. Defenda-se! Que me importa sua indisciplina? Quando é que um acadêmico pode ser um indisciplinado, sem ter medo de perder nota da capes? finaciamento do cnpq, salário de funcionário do estado, respeito dos outros brâmanes? Isso seria apenas mais uma roupagem, um uso, e não um impulso do coração.
Sua vaidade deixará que você responda?
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Descolonizar o olhar numa perspectiva eurocêntrica é acreditar numa paz branca e utópica, é negar a arena política.
Creditar ao Petismo o fracasso político e institucional das políticas públicas é reconhecer a falência dos movimentos socias e principalmente que o excesso de ismos em ambos teoremas reflete o quão distante estão os intelectuais da realidade sociopolítica no Brasil.